O cantar profano de Carlos Careqa
Carlos Careqa lançou Alma boa de lugar nenhum  (independente), álbum que confirma que não se deve enquadrá-lo em  nenhum gênero musical reducionista: será que ele é um compositor da  chamada “MPB”? Pode-se chamá-lo de vanguardista? De “maldito”?  Experimentalista? Seria um erudito...? Ora, Careqa é bem mais que tudo  isso: ele busca. 
São dele dez das doze faixas inéditas do disco. Destas, seis são só  suas e duas são de Bertold Brecht, em parcerias com Kurt Weill e Hanns  Eisler (esta com versão do próprio CC, ele que aprendeu alemão por causa  de Brecht).
Carlos Careqa encontrou na sonoridade do piano a marca para o  repertório do disco. Para tanto, levou para o estúdio grandes pianistas:  Thiago Costa, Ana Fridmann, André Mehmari, Chico Mello, Paulo Braga,  Gabriel Levy, Karin Fernandes e Arrigo Barnabé. Coube a eles escrever os  arranjos das músicas que foram interpretadas por Careqa, sendo que uma é  cantada com Chico Buarque e outra com Arrigo. Cada arranjo é uma  criação ousada que se soma a interpretações que dela se vale para  ouriçar os pelos de quem está por perto.
Destaque para Chico cantando “Minha Música” (Carlos Careqa), quando  sua voz canta à realidade e o sampler de piano de Renato Alscher e o  piano de Paulo Braga tocam à fantasia. Destaque também para a delicadeza  de “Todo Cuidado É Pouco” (Itamar Assumpção e Careqa), demonstrando ser  musicalmente falso o dilema que vê como incompatível a sutileza de um  piano, tocado quase que eruditamente, com a crueza de versos duros e  ditos por um cantor afável, logo substituído por um cantar que raspa a  garganta do intérprete.
Ótimo cantor, Careqa tem voz afinada, bela quando a usa de forma  melodiosa, desde que assim peça sua composição. Rascante quando sente  necessidade de dar dramaticidade teatral à canção e sua voz soa quase  que agressiva. Brejeira quando o humor diz presente e o cantar vem  maneiro.
Ainda que seus versos sejam sempre poeticamente densos, intensos;  ainda que cada pianista convidado tenha se transformado em tradutor do  som que foi criado originalmente pelo violão de Carlos Careqa; ainda que  o estranhamento pontue as sílabas; ainda que cada acorde, cada  harmonia, cada divisão rítmica sejam irreverentemente tocadas para  chacoalhar as certezas do ouvinte... Ainda assim ele soa pungente. Ainda  assim ele centraliza na poesia e na música o poder de cativar para  sensibilizar.
A poesia de Careqa é profana. Sua música tem a força de contrastes  inusitados. Cristã e ateia, sua voz tange o inconsciente e reflete no  estômago de quem a sente. Por mais que, ao ouvi-lo, sejamos impelidos a  sentirmo-nos num pequeno palco, ambiente enfumaçado, luzes opacas,  cheiro de bebida impregnando o ar, sala quase vazia, copo de absinto  sobre o piano encardido, figuras decadentes e delirantes desfilando suas  amarguras, o frescor da música de Carlos Careqa a tudo corrompe com o  tanto que seu sangue é novo. E a tudo contagia. E a todos extasia. 
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