Feitos um para o outro
O
bandolinista Afonso Machado convidou a cantora Clarisse Grova para gravar um
disco. Do convite nasceu Que tal? (Rob Digital). A receita musical estava dada.
A dupla somou talento e se fez parceira. A música agradeceu e, reverente,
mostrou sua face mais espontânea, mais sincera, e, num instante de requintada e
densa força, deu-se à luz em forma de melodias, letras, arranjos e
interpretações plenos de inventiva musicalidade.
Tudo
começou quando de repente o bandolinista se fez letrista. Foi como se, num
acaso, as palavras gritassem pedindo passagem. Precisavam mostrar a cara, evocar
momentos fugidios. Coisas que pareciam ter sumido na voragem do tempo agora
careciam de vir à tona, ainda que dilaceradas, doídas, alegres, saudosas ou
amalucadas.
E
o mundo da poesia migrou para o estúdio. O repertório selecionado para o CD
respirou ares da liberdade acionada pela criatividade. Afonso criou arranjos e
deu-os à competência dos músicos instrumentistas. Estes, por sua vez,
engajaram-se na busca pelo aperfeiçoamento do melhor acorde, da melhor levada,
da melhor divisão rítmica. Quando essa química se dá, não há força que esmoreça
o ímpeto da música de qualidade.
Clarisse
canta como se estivesse ao ar livre, numa manhã ensolarada de domingo – foi
assim que me vi ao ouvi-la: como se estivesse um dia solar, céu azul, nuvens
ariscas. Ela se entrega às notas de maneira firme, afinada, despudoradamente
intensa. Tudo o que lhe sai da garganta tem a serenidade integrada à capacidade
de ser uma grande intérprete.
As
letras de Afonso Machado têm a musicalidade do bandolim que ele toca tão bem –
e através desta melodia e versos se encaixam à perfeição. Novato na arte de
juntar palavras, ele se sai bem ao buscá-las e descobrir que elas se abrem para
que ele lhes dê o que possui de melhor. E Afonso não se fez de tímido,
ajuntou-as em meio a ideias e incertezas que lhe assanhavam a cabeça.
“Que
tal?”, um samba de Luiz Moura com versos de Afonso, abre o disco. As rimas dos
versos dão balanço à levada. Trombone (Marlon Sette) e sax alto (Dirceu Leite)
formam um naipe de forte sonoridade logo na introdução (eles voltam a brilhar
no intermezzo). Cavaco (Tiago Machado), violão (Luiz Moura), baixo (Afonso
Marins), bateria (Diego Zangado) e percussão (Paulino Dias) dão o molho.
Clarisse brilha.
Nem
toda faixa tem letra de Afonso. O choro-canção “Boêmio” tem versos de Paulo
César Pinheiro sobre melodia criada por Afonso e Luiz Moura. O acordeom tem
destaque no arranjo, onde bateria, cavaco, violão, baixo e percussão também
arrasam.
Um
dos momentos mais emocionantes do CD é quando Clarisse canta “Desacalanto” (Elton
Medeiros e Afonso Machado). O cello prepara a entrada do canto, e no intermezzo
sola belezas junto ao bandolim. Encantamento real. Assim como é difícil o
acerto de um compositor ao escolher sua intérprete, feliz foi a escolha de
Afonso: Clarisse agrega qualidade à sua música, tornando-a ainda mais bela.
Aquiles
Rique Reis, músico e vocalista do MPB4
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