...na música, até o silêncio tem ritmo.

quinta-feira, junho 28, 2012

Um dos momentos mais emocionantes do CD é quando Clarisse canta “Desacalanto” (Elton Medeiros e Afonso Machado)


Feitos um para o outro


O bandolinista Afonso Machado convidou a cantora Clarisse Grova para gravar um disco. Do convite nasceu Que tal? (Rob Digital). A receita musical estava dada. A dupla somou talento e se fez parceira. A música agradeceu e, reverente, mostrou sua face mais espontânea, mais sincera, e, num instante de requintada e densa força, deu-se à luz em forma de melodias, letras, arranjos e interpretações plenos de inventiva musicalidade.

Tudo começou quando de repente o bandolinista se fez letrista. Foi como se, num acaso, as palavras gritassem pedindo passagem. Precisavam mostrar a cara, evocar momentos fugidios. Coisas que pareciam ter sumido na voragem do tempo agora careciam de vir à tona, ainda que dilaceradas, doídas, alegres, saudosas ou amalucadas.

E o mundo da poesia migrou para o estúdio. O repertório selecionado para o CD respirou ares da liberdade acionada pela criatividade. Afonso criou arranjos e deu-os à competência dos músicos instrumentistas. Estes, por sua vez, engajaram-se na busca pelo aperfeiçoamento do melhor acorde, da melhor levada, da melhor divisão rítmica. Quando essa química se dá, não há força que esmoreça o ímpeto da música de qualidade.

Clarisse canta como se estivesse ao ar livre, numa manhã ensolarada de domingo – foi assim que me vi ao ouvi-la: como se estivesse um dia solar, céu azul, nuvens ariscas. Ela se entrega às notas de maneira firme, afinada, despudoradamente intensa. Tudo o que lhe sai da garganta tem a serenidade integrada à capacidade de ser uma grande intérprete.

As letras de Afonso Machado têm a musicalidade do bandolim que ele toca tão bem – e através desta melodia e versos se encaixam à perfeição. Novato na arte de juntar palavras, ele se sai bem ao buscá-las e descobrir que elas se abrem para que ele lhes dê o que possui de melhor. E Afonso não se fez de tímido, ajuntou-as em meio a ideias e incertezas que lhe assanhavam a cabeça.

“Que tal?”, um samba de Luiz Moura com versos de Afonso, abre o disco. As rimas dos versos dão balanço à levada. Trombone (Marlon Sette) e sax alto (Dirceu Leite) formam um naipe de forte sonoridade logo na introdução (eles voltam a brilhar no intermezzo). Cavaco (Tiago Machado), violão (Luiz Moura), baixo (Afonso Marins), bateria (Diego Zangado) e percussão (Paulino Dias) dão o molho. Clarisse brilha.

Nem toda faixa tem letra de Afonso. O choro-canção “Boêmio” tem versos de Paulo César Pinheiro sobre melodia criada por Afonso e Luiz Moura. O acordeom tem destaque no arranjo, onde bateria, cavaco, violão, baixo e percussão também arrasam.

Um dos momentos mais emocionantes do CD é quando Clarisse canta “Desacalanto” (Elton Medeiros e Afonso Machado). O cello prepara a entrada do canto, e no intermezzo sola belezas junto ao bandolim. Encantamento real. Assim como é difícil o acerto de um compositor ao escolher sua intérprete, feliz foi a escolha de Afonso: Clarisse agrega qualidade à sua música, tornando-a ainda mais bela.


Aquiles Rique Reis, músico e vocalista do MPB4

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