...na música, até o silêncio tem ritmo.

domingo, março 20, 2011

Ao poeta da  palavra

 Aquiles Reis

Todos sabíamos que dele era o mundo das palavras. Todos víamos que dele era o mundo dos sons. Todos críamos que dele era o mundo de todas as virtudes. Todos sentíamos que nele vivia a pura beleza. Todos admitíamos inveja por vê-lo em seu mundo de toda suprema riqueza. Todos sonhávamos que seria dele o mundo das cores mais vivas. Todos aplaudíamos sua sensibilidade feito a de um cego, sua profundidade feito a de um louco, sua pureza feito a de uma criança, sua sabedoria feito a de um sábio. Todos cantávamos loas a seu mundo de infinita bondade.
Sua força hercúlea espantava. Seus versos mágicos de poeta a todos comoviam. Fazia-nos chorar, fazia-nos rir, fazia-nos sonhar com sua palavra límpida, ele que era o mágico das palavras.
Todos sabíamos que dele viria o inesperado. Todos víamos que dele seria o mundo que desconhecíamos e temíamos, mas que ansiávamos dele saber e nele viver. Viria dele, pensávamos, o bálsamo para nossos males. Vivíamos por intermédio dele os nossos sentimentos mais profundos. Os mais assustadores arrepios vinham causados por ele. Demos, sempre, o inesperado a ele, como se desejássemos que ele o provasse e nos dissesse se poderíamos vivenciá-lo com a mesma volúpia, com o mesmo ardor.   
Outorgamos, sempre, as soluções à sua palavra de poeta. Ainda que fossem elas, as palavras, num primeiro momento, incompreensíveis, dada suas mordacidades. Procurávamos a palavra em seu silêncio, em seu refúgio, na sua dor, poeta. Carecíamos da palavra e a buscávamos em você, e a nós ela sempre veio doada por sua expressa vontade, ainda que da nossa missa você não houvesse sabido a metade.
Delegávamos, sempre, nossos medos a ele, o poeta, que seria o dono de toda a coragem. Nós ríamos, nós sonhávamos, comovíamo-nos e sofríamos, pois acreditávamos que dele era o mundo da misericórdia. E ele, com seu olhar doce, tudo compreenderia, críamos. Ele, com aquela alma de só compaixão, nos protegeria. De nós mesmos o poeta nos protegeria. Alguém o poeta não protegera?
Tínhamos convicção de que não. Se nele aplaudíamos a sensibilidade suprema de um cego, não viria dele, então, o pecado do descaso. Seu desprendimento vindo de força hercúlea não nos autorizava a uma proximidade tão intensa, quanto profana.
Ao poeta as palavras. Com a palavra o poeta que há de nos consolar. Morre o poeta. Que falta nos faz ele, o poeta.
E o poeta morto? Sabemos hoje que nunca chorou. Foi-se o poeta. Triste poeta genial! Dose letal de pura inspiração e solidão.
Nasce outro poeta. Virão com ele, cremos, as palavras que continuarão a ser o bálsamo para nossos medos.
Torquato matou-se na madrugada do dia 10 de novembro de 1972, no seu apartamento no Rio de Janeiro. Tirando a própria vida, fazendo-a sucumbir ao gás aberto e letal, ele parecia feliz naquela sua última noite. Deixou escrito um bilhete para aqueles que haveriam de cuidar de seu filho: “Vocês aí, peço o favor de não sacudirem demais o Thiago. Ele pode acordar”.


TORQUATO NETO: O Santo Demônio da Poesia


(Vai bicho desafinar o coro dos contentes)

LER / DIALOGAR / SIGNIFICAR

(Vai bicho desafinar o coro dos contentes)


Desejo


Mas...
se eu pudesse um dia
com as mãos o sol pegar;
a lua apertar entre meus pés e
trêmulo de prazer
em plena Via Láctea, todos os astros reter comigo,
um gozo frenético e sem fim,
apesar de tanta infelicidade
eu chegaria a ter pena de mim mesmo
pois, indiscutivelmente,
eu estaria louco,
demente!
Ba, 02/07/61

(NETO, Torquato. inéditos da juventude. Torquatália (do lado de dentro). Rio de Janeiro: Editora Rocco Ltda., 2004, p. 35)

Desde o início, percebe-se que Torquato Neto instaura uma poética que não surgiu do acaso, mas de muita leitura e leitura acertada. Ele leu os bons, os melhores e ainda muito moço: Carlos Drummond de Andrade, Lautréamont, Rainer Maria Rilke, Maiakóvski, Rimbaud, Baudelaire, Poe, E. E. Cummings, dentre outros. E, a partir daí, fez o seu próprio caminho e percurso. Foi aí que soube quem era, que sabia o que estava fazendo, por que, como, para que e onde poderia chegar. Assumiu, então, os riscos e conseqüências de escrever uma poesia sem limitações, procurando superar os próprios limites de seu tempo e de sua idade biológica.

Vejam bem : Torquato Neto nasceu em Teresina, capital do Piauí, no dia 9 de novembro de 1944. Nome completo: Torquato Pereira de Araújo Neto.

Coincidentemente, no Piauí, nasceu também outro poeta genial, Mário Faustino que, entre 1956 e 1958, publica no Suplemento Literário do Jornal do Brasil, seção Poesia-Experiência, poemas de escritores estrangeiros, até então não traduzidos ou, quando sim, fora do alcance geral. Torquato Neto se suicidaria, em seu apartamento, no Rio de Janeiro, na madrugada de 10 de novembro de 1972, aos 28 anos de idade, portanto no dia seguinte ao próprio aniversário.

Consta que, antes de morrer, aos poucos ele estava destruindo seus próprios escritos e, pouco antes da morte, quebra a máquina de escrever, reação psicológica que muito o identifica com Rimbaud, que se recusou a escrever, após os 18 anos, o que, de certo modo, é também uma forma de protesto e de suicídio.

Antes da morte, Torquato Neto escreve um bilhete em que deixa bem claro essa ruptura com qualquer possibilidade de saída:

FICO. Não consigo acompanhar a marcha do progresso de minha mulher ou sou uma grande múmia que só pensa em múmias mesmo vivas e lindas feito a minha mulher na sua louca disparada para o progresso. Tenho saudades como os cariocas do tempo em que eu me sentia e achava que era um guia de cegos. Depois começaram a ver e enquanto me contorcia de dores o cacho de banana caía. De modo q FICO sossegado por aqui mesmo enquanto dure. Ana é uma SANTA de véu e grinalda com um palhaço empacotado ao lado. Não acredito em amor de múmias e é por isso que eu FICO e vou ficando por causa de este amor. Pra mim chega! Vocês aí, peço o favor de não sacudirem demais o Thiago. Ele pode acordar.
(Op. cit., p. 360-361)

O bilhete arremete a um trecho de um soneto de Vinicius de Moraes, trocando-se o eterno por sossegado enquanto dure e ao bilhete que Péricles, O Amigo da Onça, deixou ao se suicidar, após ligar a torneira de gás, Por favor, não acendam fósforos!

Também nos lembra o poeta russo Sierguéi Iessiênin, que nasceu em 1895 e suicidou-se em 1925, aos 30 anos. Iessiênin também teve uma história de alcoolismo e um casamento turbulento e fracassado com a dançarina Isadora Duncan. Iessiênin suicidou-se num quarto de hotel, em Leningrado. Cortou os pulsos e escreveu com o próprio sangue duas estrofes, endereçadas ao amigo Maiakóvski:

Até logo, até logo, companheiro,
Guardo-te no meu peito e te asseguro:
O nosso afastamento passageiro
É sinal de um encontro no futuro.
Adeus, amigo, sem mãos nem palavras.
Não faças um sobrolho pensativo.
Se morrer, nesta vida, não é novo,
Tampouco há novidade em estar vivo.

(DE CAMPOS, Augusto e Haroldo, SCHNAIDERMAN, Boris, tradudores. Poesia Russa Moderna. São Paulo: Editora Perspectiva S.A., 2001, p.316)

Maiakóvski também suicidou-se, com um tiro na cabeça, em 1930, aos 37 anos de idade.

Estas referências se fazem necessárias, introdutoriamente, para sugerir a identidade que liga os poetas visionários ou videntes, marcados pela precocidade, não importa onde hajam nascido. As coincidências são por demais eloqüentes.

Lautréamont também se suicidou aos 24 anos de idade, cortando a garganta com uma navalha.

Ao deixar de escrever aos 18 anos de idade, Rimbaud, segundo Henry Miller, em O Tempo dos Assassinos, pratica uma espécie de suicídio, suicídio de quem se recusa a ficar adulto, por perceber que o mundo é mau. Rimbaud mata o poeta, para permitir que o ser biológico viva. Mas mesmo a sua vida biológica e psicológica, enquanto viveu, não passou de uma verdadeira Estação no Inferno.

A razão do suicídio, no caso específico dos gênios é sempre a mesma: o término da longa jornada em curto espaço de tempo cronológico, esgotadas e exauridas todas as energias criadoras, a cigarra resolve cantar até estourar e parte.

Torquato Neto viveu uma fase privilegiada de efervescência cultural, particularmente em se tratando de literatura e música, no Brasil e no Mundo, ao longo dos anos 60 e início dos 70.

Sufocado pelo ambiente provinciano de Teresina, que batizou de Tristeresina, em 1961 estará em Salvador, Bahia, onde, na época, em torno da Universidade da Bahia, gravitavam os mais variados artistas de vanguarda, entre eles Gilberto Gil, que viria a ser o parceiro mais freqüente de Torquato Neto.

Torquato Neto, em 1963, estuda jornalismo na Faculdade Nacional de Filosofia, no Rio de Janeiro. Daí para frente vai participar ativamente de toda a efervescência cultural carioca, sem dúvida a época mais fértil de talentos brasileiros que começaram a despontar desde a década de 50, entre eles Tom Jobim, Vinícius de Moraes, Ferreira Gullar, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque de Holanda, Mário Faustino, Waly Salomão, Jards Macalé, Elis Regina, a Jovem Guarda, Tom Zé, o Cinema Novo com Glauber Rocha, a implantação dos primeiros sistemas de Televisão, com a Rede Tupi e Globo.Nesse contexto está Torquato Neto como o poeta cuja criatividade se destaca dos demais, à medida que este se propõe ir por outros caminhos.

A poética de Torquato Neto pode ser vista em três dimensões. No primeiro momento, em inéditos da juventude, estamos diante de um poeta experimental que pratica a intertextualização, como acontece no poema Desejo que abre este ensaio.

Percebe-se que ele começa por intertextualizar Rainer Maria Rilke e mui precocemente, pois aos 17 anos, 1961. Não há dúvidas de que ele já havia lido as Elegias de Duíno.

Desejo é um poema genial para um jovem de 17 anos de idade e escrito em Salvador, Bahia, Brasil. Quase tradução da emotividade de Rilke. Mas é uma recriação sintética em que já está patente o espírito de subversão em relação ao texto-matriz. Em Desejo o aspecto paródico parte da desconstrução pudesse (...) apertar entre os meus pés (...) todos os astros reter comigo (...)

Vejamos a abertura das Elegias de Duíno, para confrontar com o poema em questão:

Quem, se eu gritasse, ouvir-me-ia na hierarquia
dos anjos? E mesmo que um deles me apertasse,
de repente, ao seu coração: eu padeceria perante sua
existência mais forte.

(RILKE, Rainer Maria. Elegias de Duíno. Edição bilíngüe. Tradução e introdução de Karlos Rischbieter e Paulo Garfunkel. Rio de Janeiro. São Paulo: Editora Record, 2002, p.127)

No poema Tema, Ba, 10/10/61, ele intertextualiza o poema José, de Carlos Drummond de Andrade, com um olhar sempre irônico e contraditório, em termos de desconstrução e subversão:

......................................................................

José do Carlos Drummond:
Tu és um ladrão.
Roubaste a minha poesia.
Deixaste-me só.
Abandonado, nu.
Sem poesia, sem nada.
(Op. cit., p. 38-39)

Gravado em disco vinil, por Jards Macalé, um de seus parceiros, a letra-poema Let’s play that (1972 e 1994), que faz parte do Cancioneiro de Torquatália, de Torquato Neto, é uma releitura do Poema de Sete Faces, de Carlos Drummond de Andrade. Também aqui o que vale é a dispersão do original, intertextualização através de troca de palavras: torto/louco. Daí para frente, o poeta parte para a galhofa e, em tom irônico, expressa seu desejo de ruptura, improvisando em cima do original, criando variações e dizendo a que veio em outra via de leitura.

Vejamos primeiramente a versão o texto de Carlos Drummond de Andrade:

Poema das Sete Faces

Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

(ANDRADE, Carlos Drummond. Poesia e Prosa. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1988, p.4).

Let’s play that

Quando eu nasci
Um anjo louco muito louco
Veio ler a minha mão
Não era um anjo barroco
Era um anjo muito louco, torto
Com asas de avião
Eis que esse anjo me disse
Apertando a minha mão
Com um sorriso entre dentes
Vai bicho desafinar
O coro dos contentes
Vai bicho desafinar
O coro dos contentes
Let’s play that
(Op. cit., p. 131)

O leitor comum talvez não perceba as segundas intenções do intertextualizador, porque este fala em linguagem velada, Era um anjo muito louco, torto/com asas de avião, quer dizer, que voa muito rápido, enviesadamente, como o poeta em relação a sua concepção de poesia:

E adiante, Eis que esse anjo me disse/Apertando a minha mão/Com um sorriso entre dentes/Vai bicho desafinar/O coro dos contentes. Quer dizer, para o poeta era imperioso destoar ou desentoar em relação ao convencional, ainda àquela altura assumido discretamente ou disfarçadamente pela maioria dos poetas neomodernistas.

No Poeminha só de brincadeira, Te, 26/12/61, inéditos da juventude, Torquato Neto caracteriza uma sátira ao poema Valsa, de Casemiro de Abreu, só para demonstrar como é fácil fazer versos adocicados ou melomusicais.

Vejamos trechos dos dois poemas do ponto de vista paralelístico, levando-se em conta a intertextualização com desconstrução:

A VALSA

Tu, ontem, / Na dança/ Que cansa,/ Voavas/ Co’as faces/ Em rosas/ Formosas/ De vivo,/ Lascivo/ Carmim;/ Na valsa/ Tão falsa,/ Corrias,/ Fugias,/ Ardente,/ Contente,/ Tranqüila,/ Serena,/Sem pena/ De mim!

(DE ABREU, Casimiro. Primaveras. Porto Alegre: L&PM Editores, 1999, p.79)

Poeminha só
de brincadeira

Sacro/ sacripanta/sem sal/ e sem ponta/ arrufa/ na porta/ da casa/ da moça/ da dona/ da casa/ (sem asa)/ com brasa/ que vaza/ vazando... vazando/ sumindo./ (...)Helena,/ Verbena/ tem pena/ de mim. (...) da cor / de Carmim.

(NETO, Torquato. Op.cit., p.40)

Em Fixação do momento, E.F.C.B. (Estrada de Ferro Central do Brasil), 15/07/62, inéditos da juventude, o poeta se conclui drummondianamente,

...penso que o trem se esqueceu
de que minas não há mais

Vejamos agora o que foi desconstruído do poema José:

.................................................................
Com a chave na mão
quer abrir a porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?

(ANDRADE, Carlos Drummond. Op. cit., p.88-89)

E por aí vai e volta em meia volta, porque mesmo na segunda visão da poética de Torquato Neto, que se constitui dos poemas do Cancioneiro ou Os Últimos Dias de Paupéria, aqui e ali, ele retorna à técnica da intertextualização, como em Marginalia II (1967), quando ele se apropria do dizer geral e subverte, como em Pão-nosso de cada dia por Pão seco de cada dia. Ou se apropria de um verso da Canção do Exílio, de Gonçalves Dias, para criar o retrato que intui do Brasil,

Minha terra tem palmeiras
Onde sopra o vento forte
Da fome do medo e muito
Principalmente
Da morte
(Op. cit., p. 124-125)

Assim também acontece com a intertextualização que ele faz do soneto Ser Mãe, de Coelho Neto, apropriando-se no poema Mãe, Coragem (1968), de alguns versos:

- ser mãe
é desdobrar fibra por fibra
os corações dos filhos,
seja feliz,
seja feliz

O segundo momento da poesia de Torquato Neto se constitui daquela parte de composições extremamente líricas e que, na maioria, fazem parte hoje da MPB, como clássicos, e para as quais foram elaboradas partituras musicais por inúmeros compositores brasileiros, como Tom Jobim e Vinícius de Moraes, Edu Lobo, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Jards Macalé, Raimundo Fagner e Zeca Baleiro, dentre tantos outros. Essas canções, do Cancioneiro, são como uma identidade do brasileiro nos idos anos 60 e início dos anos 70, fase de repressão, mas também de muita criatividade. São baladas românticas, cuja imagética arremete às melhores conquistas do lirismo internacional, um legado que passou a todas as gerações pós anos 60, graças aos Beatles e à geração de poetas que deram origem aos hippies. Assim, Torquato Neto foi um precursor da linguagem lírica da Modernidade que tem como compromisso a volta às raízes ou às origens. Conferir poemas das páginas 3 e 4.

A terceira fase de Torquato Neto se refere àquele lado de sua poesia em que há mais uma preocupação formal. Diríamos tratar-se de uma fase cummingiana.

Lendo-se os 40 POEM(A)S, de E.E. Cummings, tradução de Augusto de Campos, São Paulo: Editora Brasiliense, 1986, percebe-se a influência formal que esses textos exerceram sobre os poemas que, em Torquatália, estão entre as páginas 151 a 161. Reservamo-nos sobre estes poemas e tantos outros deste excelente poeta uma análise oportuna, quiçá para 09 de novembro, data em que o cidadão Torquato Neto, se vivo, completaria 60 anos.

Comprometemo-nos em relembrá-lo, para que nunca se apague da memória nacional um poeta tão brilhante e belamente especial.

Torquatália,
Torquato Neto

Cogito

eu sou como eu sou
pronome
pessoal intransferível
do homem que iniciei
na medida do impossível

eu sou como eu sou
agora
sem grandes segredos dantes
sem novos secretos dentes
nesta hora

eu sou como eu sou
presente
desferrolhado indecente
feito um pedaço de mim

eu sou como eu sou
vidente
e vivo tranqüilamente
todas as horas do fim
(Op.cit., p.165)

Literato cantabile

agora não se fala mais
toda palavra guarda uma cilada
e qualquer gesto é o fim
do seu início;

agora não se fala nada
e tudo é transparente em cada forma
qualquer palavra é um gesto
e em sua orla
os pássaros de sempre cantam
nos hospícios.

você não tem que me dizer
o número de mundo deste mundo
não tem que me mostrar
a outra face
face ao fim de tudo:

só tem que me dizer
o nome da república do fundo
o sim do fim do fim de tudo
e o tem do tempo vindo;

não tem que me mostrar
a outra mesma face ao outro mundo
(não se fala. não é permitido:
mudar de idéia. é proibido.
não se permite nunca mais olhares
tensões de cismas crises e outros tempos.
está vetado qualquer movimento
(Op.cit., p.168)

Três da madrugada (1971)

Três da madrugada
Quase nada
Na cidade abandonada
Nessa rua que não tem mais fim
Três da madrugada
Tudo e nada
A cidade abandonada
E essa rua não tem mais
Nada de mim...
Nada
Noite alta madrugada
Na cidade que me guarda
E esta cidade me mata
De saudade
É sempre assim...
Triste madrugada
Tudo é nada
Minha alegria cansada
E a mão fria mão gelada
Toca bem de leve em mim.
Saiba:
Meu pobre coração não vale nada
Pelas três da madrugada
Toda palavra calada
Nesta rua da cidade
Que não tem mais fim
Que não tem mais fim...

Gravações: Gal Costa no compacto gravado para a primeira edição de Os últimos dias de Paupéria e reeditada em 2002 na coletânea Todo dia é dia D (Dubas); Verônica Sabino em Verônica (1993); Nouvelle Cuisine em Novelhonovo (1995).
(Op.cit., p.103)

Pra dizer adeus (1966)

Adeus
Vou pra não voltar
E aonde quer que eu vá
Sei que vou sozinho
Tão sozinho amor
Nem é bom pensar
Que eu não volto mais
Desse meu caminho

Ah,
Pena eu não saber
Como te contar
Que o amor foi tanto
E no entanto eu queria dizer
Vem
Eu só sei dizer
Vem
Nem que seja só Pra dizer adeus.

Gravações: Elis Regina em Elis (1966); Edu Lobo e Maria Bethânia em Edu e Bethânia (1966); Edu Lobo (versão em inglês, To say goodbye) em Sérgio Mendes presents Lobo (1970); Edu e Tom Jobim em Tom & Edu (1981); Nouvelle Cuisine em Free Bossa (2000).
(Op.cit., p.105)

Geléia geral (1968)

Um poeta desfolha a bandeira
E a manhã tropical se inicia
Resplandecente cadente fagueira
Num calor girassol com alegria
Na geléia geral brasileira
Que o jornal do brasil anuncia

É bumba iê, iê boi
Ano que vem mês que foi
Ê bumba iê, iê iê
É a mesma dança, meu boi

“A alegria é a prova dos nove”
E a tristeza é teu porto seguro
Minha terra é onde o sol é mais limpo
E Mangueira é onde o samba é mais puro
Tumbadora na selva-selvagem
Pindorama, país do futuro

Ê bumba iê, iê boi
Ano que vem mês que foi
Ê bumba iê, iê iê
É a mesma dança, meu boi

É a mesma dança na sala
No Canecão na TV
E quem não dança não fala
Assiste a tudo e se cala
Não vê no meio da sala
As relíquias do Brasil:
Doce mulata malvada
Um elepê de Sinatra
Maracujá mês de abril
Santo barroco baiano
Superpoder de paisano
Formiplac e céu de anil
Três destaques da Portela
Carne-seca na janela
Alguém que chora por mim
Um carnaval de verdade
Hospitaleira amizade
Brutalidade jardim

Ê bumba iê, iê, boi
Ano que vem mês que foi
Ê bumba, iê, iê, iê
É a mesma dança, meu boi

Plurialva contente e brejeira
Miss Linda Brasil diz bom dia
E outra moça também Carolina
Da janela examina a folia
Salve o lindo pendão dos seus olhos
E a saúde que o olhar irradia

Ê bumba iê, iê boi
Ano que vem mês que foi
Ê bumba iê, iê iê
É a mesma dança, meu boi

Um poeta desfolha aa bandeira
E eu me sinto melhor colorido
Pego um jato viajo arrebento
Como roteiro do sexto sentido
Voz do morro, pilão de concreto
Tropicália, bananas ao vento

Ê bumba iê, iê boi
Ano que vem mês que foi
Ê bumba iê, iê iê
É a mesma dança meu boi

Gravação: Gilberto Gil em Tropicália ou Panis et circensis (1968) e Daniela Mercury, em Daniela Mercury (1991).
(Op.cit., p.126-128)

Vento de maio (1966)
Oi você que vem de longe
Caminhando há tanto tempo
Que vem de vida cansada
Carregada pelo vento
Oi você que vem chegando
Vá entrando e tome assento
Desapeie dessa tristeza
Que eu lhe dou de garantia
A certeza mais segura
Que mais dia, menos dia
No peito de todo mundo
Vai bater a alegria
Ôôôôôô

Oi meu irmão fique certo
Não demora e vai chegar
Aquele vento mais brando
E aquele claro luar
Que por dentro desta noite
Te ajudarão a voltar

Monte em seu cavalo baio
Que o vento já vai soprar
Vai romper o mês de maio
Não é hora de parar
Galopando na firmeza
Mais depressa vais chegar

Gravação: Wilson Simonal em Vou deixar cair (1966).
(Op.cit., p.121)

Coisa mais linda que existe (1968)

Coisa linda neste mundo
É sair por um segundo
E te encontrar por aí
Pra fazer festa ou comício
Com você perto de mim
Na cidade em que me perco
Na praça em que me resolvo
Na noite da noite escura
É lindo ter junto ao corpo
Ternura de um corpo manso
Na noite da noite escura
Coisa linda neste mundo
É sair por um segundo
E te encontrar por aí
Pra fazer festa ou comício
Com você perto de mim
O apartamento, o jornal
O pensamento, a navalha
A sorte que o vento espalha
Essa alegria, o perigo
Eu quero tudo contigo
Com você perto de mim
Coisa linda neste mundo
É sair por um segundo
E te encontrar por aí
Pra fazer festa ou comício
A coisa mais linda que existe
É ter você perto de mim

Gravação: Gal Costa em Gal Costa (1969).
(Op.cit., p.129)

Um dia desses eu me caso com você

de tanto me perder, de andar sem sono
por essa noite sem nenhum destino
por essa noite escura em que abandono
uns sonhos do meu tempo de menino
de tanto não poder mais ter saudade
de tudo o que já tive e já perdi
dona menina, eu me resolvo agora
a ir-me embora pra longe daqui.

um dia desses eu me caso com você
você vai ver, você vai ver
um dia desses, de manhã, com padre e
[pompa
você vai ver como eu me caso com você

meu tempo de brincar já foi-se embora
e agora, o que é que eu vou fazer?
não tenho onde morar, vou caminhando
sem sono, sem mistérios, sem você;
pra terra onde nasci
não volto nunca mais
e esta cidade alheia tem segredos
que eu faço tudo pra não compreender

meu pobre coração não vale nada
anda perdido, não tem solução
mas se você quiser ser minha namorada
vamos tentar, não é?
não custa nada
até pode dar certo
e se não der
eu pego um avião, vou pra xangai
e nunca mais eu volto pra te ver.
(Op.cit., p.181)


o poeta nasce feito
assim como dois mais dois;
se por aqui me deleito
é por questão de depois

a glória canta na cama
faz poemas, enche a cara
mas é com quem mais se ama
que a gente mais se depara

ou seja:

quarenta e sete quilates
sessenta e nove tragadas
vinte e sete sonhos, noites
calmas, desperdiçadas.

saiba, ronaldo, acontece
uma vez em qualquer vida:
as teias que a gente tece
abrem sempre uma ferida

no canto esquerdo do riso?
no lado torto da gente?
talvez.
o que mais forte preciso
não sei sequer se é urgente.

nem sei se eu sou o caso
que mais mereço entender -
de qualquer forma, o A-caso
me deixa tonto. e querer

não é sentar, ter na mesa
uma questão de depois:
é, melhor, ver com certeza
quem imagina um mais dois.

paris, europa, o brasil lá no brasil,
seis de setembro de 1969*
(Op.cit., p.184-185)
* Poema até então inédito, dedicado ao letrista Ronaldo Bastos. (Nota do Organizador)

Ai de mim, Copacabana (1968)

Um dia depois do outro
Numa casa abandonada
Numa avenida
Pelas três da madrugada
Num barco sem vela aberta
Nesse mar
Nesse mar sem rumo certo
Longe de ti
Ou bem perto
É indiferente, meu bem

Um dia depois do outro
Ao teu lado ou sem ninguém
No mês que vem
Neste país que me engana
Ai de mim, Copacabana
Ai de mim: quero
Voar no Concorde
Tomar o vento de assalto
Numa viagem num salto
(Você olha nos meus olhos
E não vê nada -
É assim mesmo
Que eu quero ser olhado.)

Um dia depois do outro
Talvez no ano passado É indiferente
Minha vida tua vida
Meu sonho desesperado

Nossos filhos nosso fusca
Nossa butique na Augusta
O Ford Gálaxie, o medo
De não ter um Ford Gálaxie
O táxi o bonde a rua
Meu amor, é indiferente

Minha mãe teu pai a lua
Nesse país que me engana
Ai de mim, Copacabana
Ai de mim, Copacabana
Ai de mim, Copacabana
Ai de mim.

Gravação: Caetano Veloso em compacto simples de 1967, reeditada, em 1985, no LP compilação Um poeta desfolha a bandeira e a manhã tropical se inicia. Em 1999, a faixa foi incluída no CD Singles, comercializado exclusivamente no Japão, hoje também parte integrante da caixa Todo Caetano.
(Op.cit., p.92-93)

Deus vos salve a casa santa (1968)

Um bom menino perdeu-se um dia
Entre a cozinha e o corredor
O pai deu ordem a toda família
Que o procurasse e ninguém achou
A mãe deu ordem a toda polícia
Que o perseguisse e ninguém achou

Ó deus vos salve esta casa santa
Onde a gente janta com nossos pais
Ó deus vos salve essa mesa farta
Feijão verdura ternura e paz

No apartamento vizinho ao meu
Que fica em frente ao elevador
Mora uma gente que não se entende
Que não entende o que se passou
Maria Amélia, filha da casa,
Passou da idade e não se casou
Ó deus vos salve esta casa santa
Onde a gente janta com nossos pais
Ó deus vos salve essa mesa farta
Feijão verdura ternura e paz
Um trem de ferro sobre o colchão
A porta aberta pra escuridão
A luz mortiça ilumina a mesa
E a brasa acesa queima o porão
Os pais conversam na sala e a moça
Olha em silêncio pro seu irmão
Ó deus vos salve esta casa santa
Onde a gente janta com nossos pais
Ó deus vos salve essa mesa farta
Feijão verdura ternura e paz

Gravação: Nara Leão em Nara Leão (1968).
(Op.cit., p.94)

(Neto, Torquato. Torquatália (do lado de dentro). Volume 1. Organização Paulo Roberto Pires. Rio de Janeiro. Editora Rocco, 2004)

2 comentários:

  1. Emocionante!
    Saudades de Torquato Neto!
    Luiz Alberto Guerreiro-MG

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  2. Adorei o artigo de Aquiles do MPB4 sobre Torquato Neto. Fiquei emocionada. Torquato Neto em suas letras nos mostra a originalidade de ser poeta
    Elane Tomich

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