...na música, até o silêncio tem ritmo.

sábado, agosto 06, 2011

As noites do Leblon, filho, agora são suas...


O dia em que o passado voltou




Cai uma garoa fina. Minha nau capitânia desliza cuidadosamente rumo a uma terra distante. Velas ao vento em direção ao descobrimento do presente desconhecido. A neblina desce como uma cortina pesada sobre o passado que carrego como um fardo. Não estou nem alegre nem triste, apenas navego. Não estou cansado nem desperto, apenas sigo. Levo na mala as recordações e uns poucos sonhos. Carrego o medo de monstros que nunca vi, mas sei que existem.

Após mais de um quarto de século, as correntes me arrastam para uma ilha que já conheci bem. Lá, nessa pequena ilha, já fui de casa. Hoje, lá, não guardo mais tesouros, apenas memórias. Nessa ilha, hoje não tenho mais amigos, apenas conhecidos. Gente que fala uma língua que quase não entendo, linguagem que expressa o que não sinto mais, e que talvez nunca tenha sentido.

A nau busca o destino. Sinto frio. Um frio na alma, dentro de um corpo que traz marcas de tatuagens de serpentes e corações de mães. Alma que transborda emoções que não se contentam em estar ali, querem voar.

A placa presa no bico de uma impávida gaivota anuncia: “Leblon à esquerda”. Instintivamente giro o leme para onde a seta aponta. Lá é a minha ilha, penso, depois de tanto tempo nela aportarei outra vez. À frente, o mar. À esquerda, o canal do Jardim de Alá. À direita, o canal da Rua Visconde de Albuquerque. Atrás, a lagoa Rodrigo de Freitas. No meio, um dos meus passados. E lá nesse meio um filho, o mais velho.     Recebo-o na sala do apartamento onde passarei os próximos trinta dias. Ele olha ao redor e, súbito, seus olhos estancam na garrafa de Fernet Branca, minha bebida amarga, forte e favorita desde sempre. “Pai, essa garrafa já estava aqui ou foi você quem trouxe? Eu me lembro desse desenho no rótulo, dessa águia. Puxa vida, pai, já faz tanto tempo, como é que eu ainda me lembro?” O que responder? Não tem resposta não, filho. Você não esqueceu. Só isso. Quando deixei a ilha, filho, você era bem pequeno, passeávamos na calçada, íamos à praia, você e sua camisa do Flamengo, lembra? E o dia em que você corria sozinho pela beira d`água e uma onda o derrubou, lembra? Lá atrás, tentei voar para alcançá-lo. Seu pai não sabe voar, filho. Quando deixei essa ilha, filho, você me acompanhava por botecos que me serviam a cerveja que prenunciava a partida.

Hoje fomos beber chope no seu bar, servido pelo seu garçom. Andamos pelas ruas da sua ilha, filho. As noites do Leblon, filho, agora são suas. Você as conquistou com sua maioridade e sabedoria.

Leve-me por aí, mostre-me o que já conheci, lembre-me do que nunca esqueci, faça-me voltar o tempo de quando nos separamos, diga-me que nada foi em vão. Enquanto minha nau estiver aportada nessa ilha, filho, será como a volta do passado ao seu porto. Serei, por um breve tempo, um ilhéu antigo. Falarei sua língua, sentirei seu tempo passar e me permitirei lembranças boas e más. Serão as lembranças que levarei quando eu voltar a partir.






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