Minha filha,
Seu avô, meu pai, foi perseguido pelos militares que tomaram o poder  em 31 de março de 1964. Ele era um homem inteligente, honesto e  trabalhador. Foi preso, perseguido e logo ficou muito doente. Deixou-nos  deixou cedo demais. Mas veja como são as coisas: hoje ele é nome de  colégio, CIEP Prof. Geraldo Reis, em Niterói, no Rio de Janeiro.
Fui para São Paulo em 1965. Com 17 anos, era a primeira vez que eu  saía de Niterói sem meus pais. Eu e meus três companheiros fomos tentar o  sonho de cantar no Fino da Bossa, programa de Elis Regina na TV Record.  Dias depois de nossa chegada, conhecemos um principiante: Chico  Buarque. Conhecemos também as meninas do Quarteto em Cy e com elas  ensaiamos um pot-pourri de sambas antigos e, na primeira tentativa de  aparecer no Fino da Bossa, o apresentamos a um dos diretores do  programa, Manoel Carlos, hoje autor de novelas para a Globo.  Conseguimos... Nossas férias estavam só começando.
As férias chegaram ao fim, tínhamos que voltar para casa. Mas o  empresário (sim, já havia um cuidando da nossa “agenda”) disse que  tínhamos que decidir se queríamos ser profissionais de verdade ou se  voltaríamos para Niterói. Foi difícil a decisão, filha... Ficamos um ano  em São Paulo.
Em 1966, tivemos o nosso “batismo” num festival da TV Record.  Cantamos “Canção de Não Cantar”, de Sérgio Bittencourt (filho do grande  Jacó do Bandolim). Ficamos em quarto lugar e fomos contratados pela  Record. Um ano depois defendemos “Gabriela”, frevo de Chico Maranhão, um  jovem estudante da Universidade de São Paulo (USP), que ficou em sexto  lugar, e “Roda Viva”, que cantamos junto com Chico Buarque e ficou em  quarto. “Roda Viva”, inclusive, é hoje o tema principal da nova novela  de Thiago Santiago no SBT, Amor e Revolução.
Aos festivais da Record somaram-se o Festival Internacional da  Canção, da Globo, e o Festival Universitário da Canção (foi neste, em  1970, que cantamos “Amigo É Pra Essas Coisas”, de Sílvio Silva Junior e  Aldir Blanc, que ficou em segundo lugar).
Olha, filha, apesar da ditadura militar (víamos amigos desaparecerem e  nunca mais voltarem, outros desapareciam e voltavam marcados pela  violência brutal da tortura), apenas por medo ou descuido fingíamos não  ser felizes.
Àquela época a censura atingia indiscriminadamente autores e público,  já que só se via, ouvia e lia o que os donos do poder julgavam  aceitáveis. Mesmo sob o jugo dela, que mutilava a criação, vivemos no  limite do desafio de enfrentá-la. O MPB4, seu avô e tantos outros ainda  melhores do que nós éramos considerados “subversivos”. Isso, antes de  nos ameaçar, honrava-nos.
Filha, nunca desista de tentar modificar o que lhe parecer errado.  Junte-se a outros e seja forte. Deixe que as ideias briguem, nunca as  pessoas. Não se acanhe de chorar. Use a palavra. Busque o novo sem temer  o velho. Repudie a arrogância e o preconceito. Não contenha uma  exclamação de felicidade ante o belo. Seja feliz, Leticia!
Um beijo carinhoso.
Belíssimo texto. Parabéns, Aquiles, parabéns Literacia.
ResponderExcluirBelvedere